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Uma prática antiga. — O jejum não foi inventado pelos cristãos (e, para dizer a verdade, nem pelos judeus), mas é uma prática humana universal que o Senhor e sua Igreja santificaram. Limitações no comer periódicas e autoimpostas são atestadas em praticamente toda cultura como meio de suplicar coisas aos deuses ou aplacar-lhes a ira. Vemo-lo ainda hoje na cultura secular, mas os deuses são da saúde e do bem-estar, e não mais do vento e da chuva.
Como acontece com muitas práticas pagãs (embora não com todas, certamente), podemos vislumbrar aspectos da religião verdadeira nesses rituais. O jejum de fato melhora nosso relacionamento com o divino, mas é ao Deus amoroso, uno e trino, da Bíblia — e não aos deuses antigos feitos por mãos humanas, ou aos deuses da boa saúde — que devemos render nossos sacrifícios.
No fim das contas, jejuar é isto: um sacrifício. E o sacrifício é algo essencial ao culto, o qual constitui, por sua vez, o dever pinacular da virtude da religião. Por “religião” entendemos a justiça devida a Deus como nosso Criador, Sustentador e Redentor — um débito que jamais poderemos anular, mas que podemos recompensar de forma aproximada, oferecendo o melhor de nós mesmos a Ele. Uma das maneiras de fazer isso é deixar algo que temos em alta conta, como nosso conforto e prazer em comer, e oferecê-lo ao Senhor.
Eis como Dag Tessore, autor de um belo livrinho sobre o jejum, descreve o sacrifício na Sagrada Escritura: “Deus ordenou… sacrifícios para ver se os homens acreditavam nele, ou se eram capazes de fazer algo que só tem sentido caso Deus exista”. Como veremos, isso distingue o jejum de uma dieta ou alimentação saudável: Estamos realmente fazendo um sacrifício e oferecendo-o ao Senhor? Este ato faz sentido apenas por causa dele?
É isso o que vemos na citação do profeta Joel [usada todos os anos na Quarta-feira de Cinzas]: “Agora, diz o Senhor, voltai para mim com todo o vosso coração, com jejuns, lágrimas e gemidos; rasgai o coração, e não as vestes” (2,12-13). O jejum era parte de um conjunto de penitências que os israelitas tomavam sobre si a fim de satisfazer os pecados ou implorar um favor ou perdão do Senhor. Com ele, que mortifica nosso apetite por comida, aparece várias vezes no Antigo Testamento o uso de sacos (mortificando nosso apetite por conforto) e cinzas (mortificando nosso apetite por glória). Juntos, eles equivalem a uma renúncia dos bens temporais deste mundo em favor do bem eterno do mundo que há de vir.
A Escritura diz que São João Batista se alimentava de gafanhotos e mel silvestre. Na imagem, um retrato dele por Alejandro de Loarte.
É por isso que o Senhor diz pelo profeta: “Rasgai o coração, e não as vestes”. Qualquer que seja o bem que essas práticas penitenciais acarretem em termos mundanos — o jejum talvez faça perder alguns quilos extra e cobrir-se de saco quem sabe não ajuda a esfoliar a pele… —, ele é irrelevante em termos espirituais. O jejum, como uma disciplina espiritual, tem muito mais a ver com o coração que com o estômago.
Assim lemos no livro de Jonas, que a cidade de Nínive se arrependeu depois que o profeta anunciou o juízo de Deus. O rei anunciou: “Fica proibido aos homens e aos animais, tanto do gado maior como do menor, comer o que quer que seja, assim como pastar ou beber. Homens e animais se cobrirão de saco. Todos clamem a Deus, em alta voz” (Jn 3,7-8). Clamar o nome do Senhor é, no Velho Testamento, um ato essencial de fé, ampliado e selado pelo sacrifício dos alimentos e do conforto feito pelos cidadãos da cidade.
No livro de Esdras (8,21-23), o profeta escreve:
Ali, junto ao riacho Aava, publiquei um jejum, a fim de nos humilharmos diante de nosso Deus e implorar dele uma feliz viagem, para nós, nossos filhos e para todos os nossos bens. Tive vergonha, com efeito, de pedir ao rei uma escolta e cavaleiros para nos proteger contra os inimigos durante o trajeto; porque havíamos dito ao rei: ‘A mão de nosso Deus protege com sua bondade todos os que o procuram; mas sua força e sua cólera se fazem sentir em todos aqueles que o abandonam’. Por isso, jejuamos e invocamos o nosso Deus; e ele nos ouviu.
Nesta época, Esdras estava conduzindo os israelitas para Jerusalém, sua casa, depois do exílio que tiveram na Babilônia. O jejum mostrava ao povo que a libertação física do cativeiro não era suficiente; eles precisavam ser, além disso, purificados espiritualmente, a fim de ficar prontos para assumir uma vez mais seus deveres como povo de Deus em Jerusalém. Aqui vemos de novo como o jejum amplia a eficácia da oração, atrelando a ela um sacrifício que é ato físico de fé no Senhor. Foi nesse contexto, em que o jejum era entendido como um sacrifício orante e espiritualmente purificador ao Senhor, que os primeiros cristãos adotaram a prática.
Razões para jejuar. — Em última análise, devemos jejuar pelo mesmo motivo que fazemos tudo o mais: porque é agradável ao Senhor. Desde que sejam feitos por Ele e a Ele, nossos sacrifícios lhe dão glória, pois demonstram que estruturamos nossas vidas em torno da realidade do Deus uno e trino, e não dos deuses do prazer, do poder e da satisfação mundana. E o jejum, como vimos, teve lugar de destaque entre os sacrifícios praticados pelos cristãos e impostos pela Igreja desde os primórdios.
Mas o jejum, como qualquer outra boa obra, também traz outros benefícios. Como os melhores pensadores têm percebido desde Aristóteles pelo menos, a virtude se desenvolve pela formação de bons hábitos — e pelo abandono dos maus. E muitos de nossos hábitos mais enraizados envolvem atos essenciais à vida, especialmente os de comer e beber. Às vezes nos acostumamos com certos alimentos e bebidas, e pode ser muito difícil imaginar a formação de hábitos diferentes daqueles com que estamos acostumados.
“São João Batista no deserto”, por Luis Tristán.
Como qualquer hábito, também esses podem ser bons ou maus, mas, na América do século XXI, é justo dizer que há muitos hábitos alimentares não tão bons assim. Jejuar, especialmente com uma frequência semanal e mesmo que de modo bem brando, pode ser uma maneira de adquirir bons e enfraquecer maus hábitos. Separar dias para limitar nosso consumo de determinadas comidas em determinadas épocas é algo que nos força a refletir (e rezar) mais a respeito do que comemos. E a ponderação sobre algo tão básico como a alimentação é um bom treinamento para começar a ponderar outros aspectos de nossas vidas. Quando nos questionamos se a comida e a bebida que ingerimos glorificam a Deus, podemos lembrar de perguntar se nossos outros hábitos também o glorificam.
O jejum também pode, portanto, treinar a vontade. Há poucos sentimentos mais primitivos que a necessidade de comer quando estamos com fome. (Há uma razão para a Igreja usar o termo “apetite” como sinônimo de “desejo”.) Treinar-nos a resistir a esses impulsos por causa de um bem maior — no caso, Deus — nos ensina a colocá-los no devido lugar — ou seja, sob o controle de nossa razão. Isso gera frutos em outros aspectos de nossas vidas quando nossos apetites tentam tomar as rédeas, especialmente na sexualidade.
Que razões seriam más para jejuar? Aludimos a elas veladamente antes, mas todas envolvem jejuar para alcançar bens deste mundo, ao invés de bens espirituais. “Jejuar” a fim de “ficar em forma” para o verão não é jejum algum, na verdade; é dieta. O fato de que o jejum pode ter benefícios colaterais para nossa saúde demonstra como as coisas que Deus quer para nós fazem bem à integridade do nosso ser, corpo e alma. Mas perder peso não é uma boa razão principal para jejuar nas sextas — honrar o Senhor lembrando de sua Paixão e Morte, sim.
Ao mesmo tempo, se estivermos nos tornando maus e cruéis ao ingerir menos comida, também isso não é jejum algum. Nas palavras de São Máximo, o Confessor:
Que sentido há em empalideceres o rosto pelo jejum se depois o tornas lívido de ressentimento e de inveja? Que sentido há em não beberes vinho, se depois te embebedas com o veneno da raiva? Que sentido há em te absteres de carne, a qual foi criada para ser comida, ao mesmo tempo que dilaceras os membros de teus irmãos pela malícia e com calúnias? (Máximo de Turim, Sermones XVIII. Apud Tessore, Fasting 58)
O jejum verdadeiro envolve voltar-se para Deus e dar as costas aos nossos apetites, inclusive os desejos de raiva, inveja etc. Se o jejum alimentar tem como efeito dificuldades espirituais em outros campos, precisamos confrontar essas dificuldades — e talvez ajustar nosso jejum de comida, para que ele não faça mais mal do que bem, a nós mesmos e aos que estão ao nosso redor.
Afinal de contas, como dissemos desde o começo, o jejum deve ser alegre. Quando nos negamos as satisfações do mundo por um bem mais elevado, celeste, tornamos a realidade da Trindade manifesta em nossas vidas. Oxalá essa prática se torne uma parte regular de nossas vidas espirituais!