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“Dirigiu-se Jesus para o monte” (Jo 8, 1), para o monte das Oliveiras, para o monte fértil, para o monte do bálsamo, para o monte, enfim, do crisma. De fato, em que outro lugar convinha a Cristo ensinar, senão no monte das Oliveiras? O nome “Cristo”, com efeito, vem do grego “crisma” (χρισμα), que em latim quer dizer “unção”. Foi por isso que Ele nos ungiu, porque quis que pelejássemos contra o diabo. “Ao romper da manhã, voltou ao Templo e todo o povo veio a Ele. Assentou-se e começou a ensinar” (Jo 8, 2), e ninguém lhe deitou as mãos porque ainda não se dignara padecer (cf. Jo 7, 6.30; 8, 20).
Verdade, mansidão e justiça
Vede agora a que ponto procuraram os inimigos pôr à prova a mansidão do Senhor:
Os escribas e os fariseus trouxeram-lhe uma mulher que fora apanhada em adultério. Puseram-na no meio da multidão e disseram a Jesus: “Mestre, agora mesmo esta mulher foi apanhada em adultério. Moisés mandou-nos na Lei que apedrejássemos tais mulheres. Que dizes tu a isso?” Perguntavam-lhe isso, a fim de o pôr à prova e poderem acusá-lo (Jo 8, 3-6).
Mas donde a matéria da acusação? Porventura o apanharam também a Ele em algum delito? Ou acaso insinuavam que aquela mulher de algum modo lhe dizia respeito? Que significa, então: “a fim de o pôr à prova e poderem acusá-lo”? Compreenderemos, irmãos, como elevada e admirável foi no Senhor a mansidão. Já [os fariseus] haviam percebido que Ele era demasiado humilde e manso; a respeito dele, de fato, fora predito: “Cingi-vos com a vossa espada, ó herói; ele é vosso ornamento e esplendor. Erguei-vos vitorioso em defesa da verdade e da justiça” (Sl 44, 4s).
Como doutor, Ele trouxe a verdade; como libertador, a mansidão; como juiz, a justiça. Por isso disse o profeta que Ele havia de reinar no Espírito Santo (cf. Is 11). Quando falava, conhecia-se a verdade; quando não revidava aos inimigos, elogiava-se a mansidão. Como fossem atormentados pela inveja e pela malignidade por causa destas duas coisas — a saber, a sua verdade e mansidão —, seus inimigos decidiram tentá-lo enfim na terceira, isto é, na justiça. Por quê? Porque mandava a Lei apedrejar os adúlteros, e a Lei em caso nenhum podia prescrever algo injusto. Se alguém dissesse o contrário do que ordenava a Lei, era tido por injusto. Disseram então [os fariseus] de si para si: “Julgam-no honesto e porta-se mansamente. Ponhamos em dúvida a sua justiça.Tomemos uma mulher surpreendida em adultério e digamos a Ele o que na Lei está dito. Se mandar que a apedrejem, não será manso; se achar que lhe devem perdoar, não será justo. Ora, não há dúvida de que Ele há de despedi-la impune, para não perder a benignidade que o fez grato ao povo. Teremos assim um motivo para o acusar de descumpridor da Lei: ‘És inimigo da Lei’, diremos, ‘é contra Moisés que respondes; pior ainda, é contra aquele que por Moisés nos deu a Lei. És réu de morte: também tu deves ser apedrejado com ela’”.
Com tais palavras e maquinações poder-se-ia excitar a inveja, agitar a acusação, reclamar a condenação; mas contra quem, afinal? A perversidade contra a retidão; a falsidade contra a verdade; o coração corrupto contra o reto; a tolice enfim contra a sabedoria. Ora, quando poderiam [os fariseus] lhe armar um embuste sem que eles mesmos caíssem antes na própria armadilha? Eis que, ao responder, o Senhor há de guardar a justiça como não se há de afastar da mansidão. Como não creram naquele que lhes poderia desatar as amarras [do pecado], não foi enganado aquele a quem perseguiam; foram antes os perseguidores que terminaram enganados.
Ficaram a sós a miserável e a Misericórdia
E o que respondeu o Senhor Jesus? Que respondeu a Verdade? Que respondeu a Sabedoria? Que respondeu a própria Justiça, contra a qual se armava a calúnia? Não disse: “Não seja apedrejada”, para não contradizer a Lei, mas tampouco: “Seja apedrejada”, porque “o Filho do homem veio procurar e salvar o que estava perdido” (Lc 19, 10). O que então lhes respondeu o Senhor? Vede quão plena de justiça, quão plena de mansidão e verdade foi a resposta! “Quem de vós estiver sem pecado”, disse, “seja o primeiro a lhe atirar uma pedra” (Jo 8, 7). Oh! resposta de sabedoria! Como os fez voltar a si! Por fora, caluniavam e censuravam; por dentro, faziam-se de cegos às próprias faltas: viam a adúltera mas não a si mesmos. Queriam que se cumprisse a Lei os que com mentiras e ardis a descumpriam. Que se cumprisse, sim, mas não em verdade, corrigindo o adultério com o remédio da castidade.
Ouvistes, ó judeus; ouvistes, fariseus, ouvistes, ó escribas, ao guardião da Lei; mas não haveis ainda compreendido o Legislador. Que lhes diz o ter escrito na terra com o dedo? A Lei foi escrita pelo dedo de Deus; devido porém à dureza de alguns, foi gravada em tábuas de pedra (cf. Ex 31, 18; Dt 9, 12). Agora escreve o Senhor na terra, pois era fruto o que buscava. Ouviste: “Cumpra-se a Lei; apedreje-se a adúltera”. É punindo-a, porventura, que será cumprida a Lei pelos que verdadeiramente deviam ser punidos? Que cada um de vós se examine, entre em si mesmo, dirija-se ao tribunal da razão, ponha-se diante da própria consciência, obrigue-se a confessar. Cada um sabe quem é, porque ninguém, senão o espírito do homem que nele reside, conhece as coisas que há no homem (cf. 1Cor 2, 11). Ao olhar para dentro de si, cada um se reconhece pecador. De fato é assim. Portanto, ou deixai ir embora a adúltera, ou padecei com ela o castigo da Lei. Se [Jesus] dissesse: “Não seja apedrejada”, seria tido por injusto; mas se dissesse: “Apedreje-se”, não pareceria brando. Diga, então, aquele que é tão justo como manso, o que deve dizer: “Quem de vós estiver sem pecado, seja o primeiro a lhe atirar uma pedra”. É a voz da Justiça. Puna-se a pecadora, mas não por pecadores; cumpra-se a Lei, mas não pelos que a não observam. É decerto a voz da Justiça. Feridos como por um dardo, aqueles homens, examinando-se a si mesmos e vendo-se réus, se retiraram todos “um por um” (cf. Jo 8, 9). Só dois permaneceram, a miserável e a Misericórdia. O Senhor, entretanto, após tê-los alvejado com a seta da justiça, nem se dignou levantar o rosto para ver quem se ia, senão que, desviando deles olhar, “escrevia novamente com o dedo na terra” (Jo 8, 8).
Depois de todos terem saído, [Jesus] elevou os olhos para a mulher com quem permanecera a sós. Já ouvimos a voz da justiça; ouçamos agora a da mansidão. Creio que aquela mulher se horrorizara ao ouvir dizer o Senhor: “Quem de vós estiver sem pecado, seja o primeiro a lhe atirar uma pedra”. Os acusadores, sentindo-se acusados e acusando-se com a própria retirada, deixaram junto de quem não tinha pecado uma mulher com grandes pecados. E porque ouvira: “Quem de vós estiver sem pecado, seja o primeiro a lhe atirar uma pedra”, decerto imaginava que seria punida por Ele, em quem não se achava pecado. Ele, porém, que com a língua da justiça afugentara-lhe os adversários, elevando agora os olhos da mansidão perguntou-lhe: “Ninguém te condenou?” Respondeu ela: “Ninguém, Senhor”. Disse-lhe então Jesus: “Tampouco eu te condeno” (Jo 8, 10), por quem temeste ser castigada, pois em mim não achaste pecado. “Nem eu te condeno”. Que é isto, Senhor? És então favorável aos pecados? Certamente não. Vede o que segue: “Vai e não tornes a pecar” (Jo 8, 10). Logo, o Senhor condenou — não o homem, mas o pecado. Se fora em favor dos pecados, dissera: “Vai e vive como quiseres. Sê segura do meu aval; Eu, por mais que voltes a pecar, te hei de livrar de toda a pena da Geena e dos suplícios do inferno”. Mas não o disse.
Ouçam, pois, os que amam a mansidão do Senhor. Que temam também a verdade. Sim, “o Senhor é bom e reto” (Sl 24, 8). Tu o amas porque Ele é bom, e o temes porque é reto. Sendo dócil, disse: “Calei-me”; sendo justo: “Acaso guardarei para sempre o silêncio?” (Is 42, 14 na LXX). “O Senhor é bondoso e compassivo”. Assim é. Dize porém ainda mais: é “longânime”; prossegue: “e cheio de misericórdia”. Mas eis o que vem por último: “e veraz” (cf. Sl 85, 15). Os que por ora suporta como pecadores, esses os há de julgar como desprezadores:
Ou desprezas tu as riquezas da sua benignidade, e paciência e longanimidade, ignorando que a benignidade de Deus te leva ao arrependimento? Mas, segundo a tua dureza e teu coração impenitente, entesouras ira para ti no dia da ira e da manifestação do juízo de Deus, o qual recompensará cada um segundo as suas obras (Rm 2, 4ss).
Senhor manso, Senhor magnânimo, Senhor misericordioso, mas também Senhor justo e Senhor verdadeiro. Oferece-te tempo para que te corrijas, mas tu amas mais a dilação que a correção. Foste mal ontem? Sê bom hoje. Passaste com malícia o dia de hoje? Muda-te para o de amanhã. Estás sempre à espera, e muito te fias da misericórdia de Deus, como se Ele, que te prometeu o perdão pela penitência, também te houvera prometido vida longa… Como sabes o que te reserva o amanhã? Dizes bem em teu coração: “Quando eu me tiver corrigido, aí sim o Senhor perdoará os meus pecados”. Não negamos que Deus prometeu perdoar aos que se convertem e corrigem. Com efeito, no profeta em que me lês que prometeu ao corrigido a indulgência, não me lês que te prometeu a ti Deus uma longa vida.
Entre a esperança e o desespero
Os homens por uma e outra coisa se põem em perigo, seja esperando, seja desesperando — por coisas contrárias, por sentimentos contrários. Quem se engana esperando? O que diz: “Deus é bom, Deus é misericordioso; farei, por isso, o que me aprouver, o que me agradar. Não porei freios em meus desejos, realizarei os anseios de minh’alma. Por quê? Porque Deus é misericordioso, Deus é bom, Deus é manso”. Os que o dizem arriscam-se pela esperança. Os que, ao contrário, se põem em perigo pelo desespero são aqueles que, tendo cometido pecados graves, julgam não poder ser perdoados, mesmo que se arrependam, e se imaginam destinados sem remédio à condenação. Estes, como gladiadores sentenciados ao fogo e à espada, pensam: “Somos condenados. Por que, então, não fazemos o que desejamos?” Por isso dão pena os desesperados: como já não têm a que temer, tornam-se eles mesmos temerosos. Destes dá cabo o desespero; daqueles, a esperança. O espírito flutua assim entre a esperança e o desespero. Há que temer que a esperança venha a matar e fazer réu de juízo a quem muito se fia da misericórdia. Mas há que temer ainda que mate o desespero e torne impenitente a quem se crê imperdoável, pois a este dirá a sabedoria do juiz: “Também eu me rirei do vosso infortúnio” (Pr 1, 26).
O que faz o Senhor com os que sofrem destes dois males? Aos que sofrem de esperança diz: “Não demores em te converter ao Senhor, não adies de dia em dia, pois sua cólera virá de repente, e Ele te perderá no dia do castigo” (Eclo 5, 8s). Aos que sofrem de desespero, que diz? “Em qualquer dia que o ímpio se converter, esquecer-me-ei de todas as suas iniquidades” (cf. Ez 18, 21s.27). Por causa dos que se arriscam no desespero, o Senhor deu o porto da indulgência; por causa dos que se arriscam na esperança e se iludem com dilações, fez incerto o dia da morte. Ignoras quando virá o último dia. És ingrato, porque tens o dia de hoje para te corrigires? Assim disse Ele àquela mulher: “Tampouco eu te condeno”; mas ainda que estejas segura quanto ao passado, cuida bem do futuro. “Tampouco eu te condeno”, apaguei o que fizeste, mas observa o que ordeno para que então encontres o que prometi.